O cinzento lá dentro
«A criatividade e a doença mental são opostas, não complementares. É uma confusão entre doença mental e criatividade […] A loucura é o oposto [da imaginação]: é um forte, uma prisão.»
A frase que abre o nosso texto, neste mês de férias, é de Joanne Greenberg, autora de I never promised you a rose garden (Nunca lhe prometi um jardim de rosas, em português), uma autobiografia ficcionada em que a escritora, sob o pseudónimo Hannah Green, reflete sobre a sua história pessoal com a esquizofrenia.
A reflexão de Greenberg expressa um dos mitos mais comuns e, para alguns, mais atractivos sobre a doença mental: as pessoas que sofrem com esquizofrenia, doença bipolar e até depressão são mais criativas, mais imaginativas e mais visionárias do que as pessoas que não sofrem com essas doenças; são capazes de pensar “fora de caixa” e de ver a realidade sob uma perspectiva vedada aos outros. Nada podia ser mais falso, errado e até discriminatório. Joanne Greenberg tem razão: a doença mental é “um forte, uma prisão”. Neste aspecto, os defensores da antipsiquiatria estão total e terminantemente errados, e prestam um desfavor estigmatizante aos doentes.
Ao contrário do que muitos pensam, a doença mental impede a criatividade, torna as pessoas pouco ou nada produtivas e rompe com a imaginação: as pessoas que dela sofrem tendem a ficar fechadas numa caixa de medo, angústia, desespero e descontrolo que as impede de criar. Pelo contrário, só conseguem ser produtivas se estiverem bem, saudáveis.
“Ora, mas se ela conseguiu escrever um livro sobre a sua experiência com a esquizofrenia… Imaginação não lhe falta! E essa veio-lhe da esquizofrenia!”. É tentador pensar assim, mas é falso. Greenberg, e centenas de outros autores e artistas como ela, conseguem escrever e produzir APESAR da doença que os aflige. Como criadores talvez se inspirem na sua experiência (demasiado penosa) com a doença mental, mas a sua criatividade existe apesar da doença e não por causa dela. No fundo, Virginia Woolf, Florbela Espanca ou Camilo teriam sido autores igualmente geniais mesmo que não tivesse caído sobre eles o manto pesado da melancolia (depressão, nos tempos de hoje).
Há pessoas que, sofrendo de doença mental, são espantosamente criativas. E só temos de agradecer-lhes partilharem a sua imaginação. Mas são criativas porque são pessoas naturalmente criativas, não porque a doença lhes abriu horizontes. Se a doença mental faz alguma coisa a um artista é paralisá-lo e fechar-lhe as portas.
Não se deixe amarrar pelos mitos e estigmas que lhe incutiram. Entretanto, e chegados a Agosto – Ah, férias, sol e mar! –, deixo como sugestão para leitura de férias o livro de Joanne Greenberg e, já agora, a sua adaptação homónima ao cinema (Anthony Page, 1977).
Voltamos em Setembro.
Até lá, boas férias!
(Rubrica “Falemos de Saúde Mental”, publicada mensalmente no Diário de Leiria)
Daniel Rodrigues Machado
Interno de Psiquiatria do Centro Hospitalar de Leiria
(Rubrica “Falemos de Saúde Mental”, publicada mensalmente no Diário de Leiria)