A Psiquiatria que dá choques

No filme Voando sobre um Ninho de Cucos (Milos Forman, 1975) há uma famosa cena em que o rebelde Randall McMurphy (Jack Nicholson) é submetido a uma sessão de electroconvulsivoterapia. É uma cena arrepiante em que vemos o protagonista a contorcer-se de dores enquanto a terrível enfermeira Mildred Ratched (Louise Fletcher) faz passar uma corrente eléctrica de alta voltagem pela cabeça do pobre herói. O filme e o livro homónimo em que se baseia devem ser contextualizados no movimento anti-Psiquiatria dos anos 60. Infelizmente, a electroconvulsivoterapia – ECT, para simplificar – ganhou nessa época uma fama estigmatizante que não merece. Tentemos, pois, esclarecer a importância da ECT no tratamento das doenças mentais graves.
 
A ECT foi desenvolvida nos anos 30 pelos médicos italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini e consiste em induzir, de forma muito controlada, um estado de convulsão no cérebro, através da descarga de pulsos eléctricos curtos e de baixa voltagem. Naturalmente, uma terapia que consiste em passar corrente eléctrica pela cabeça das pessoas é facilmente vista como… bom, verdadeiramente chocante, levantando dúvidas quanto à sua segurança, eficácia e necessidade.
 
Ao contrário do que é mostrado no filme, a ECT é feita sob anestesia geral: o doente é sedado por um anestesista e só depois são induzidos os choques. Assim, o doente encontra-se inconsciente durante todo o procedimento, pelo que não sente dor nem se recorda do que aconteceu durante a sessão terapêutica. Uma vez que a corrente eléctrica é muito bem tolerada pelo cérebro, os riscos da ECT são praticamente os da anestesia e não dos choques em si. Neste aspecto, quase pode dizer-se que é mais seguro ser submetido à ECT do que ser operado ao apêndice. Na verdade, a ECT é tão segura que até pode ser usada em grávidas, sem quaisquer riscos para a mãe ou para o bebé. Portanto, a ECT é um procedimento indolor e muito seguro, sendo os riscos associados à anestesia e não aos choques.
 
Naturalmente, nem todos os que sofrem de doença mental têm critérios para fazerem ECT. Esta terapia é aplicada apenas a pessoas com doença mental grave resistente –  depressão major, doença bipolar, esquizofrenia, catatonia – que não melhora mesmo depois de esgotadas todas as opções farmacológicas. Neste sentido, a ECT é um tratamento de última linha. Há outro critério essencial que é importante mencionar: a ECT só é aplicada mediante o consentimento expresso do doente, pelo que nunca poderia ser aplicada apenas por vontade médica.
 
Num próximo texto tentaremos perceber como é que a ECT faz o que faz, e que efeitos tem no cérebro. Até lá, não se deixe chocar pela ficção: a ECT é segura e importante para muitos dos que sofrem com doença mental grave e resistente.
 
Por fim, chegados a Dezembro, desejo a todos os leitores festas felizes, com segurança, tranquilidade e saúde.


(Rubrica “Falemos de Saúde Mental”, publicada mensalmente no Diário de Leiria)

Ver artigo relacionado aqui.